O ARQUITECTO FRANCISCO DO AMARAL
visto por ALMADA NEGREIROS
A figura do arquitecto Francisco do Amaral, falecido há dias e que foi um dos espíritos mais brilhantes da sua geração, sugeriu para Almada Negreiros, para o «Diário Popular», a bela página interpretativa, de profunda e sentida meditação, que a seguir publicamos:

Eram oito menos dez, morreu o Xico. Oito menos dez é uma hora qualquer, em qualquer dia, e, hoje, foi a do Xico. É o segundo dos meus amigos «de toda a vida» que me morre. O outro também era arquitecto.  Contas feitas, conheci o homem mais difícil que encontrei na vida. Difícil para todos (o que pode ser heróico), e difícil para ele mesmo, sobretudo (o que já é sagrado): uma coerência inglória, talvez.

As duas inteligências receptivas mais extraordinárias que até hoje me foi dado a conhecer, uma era a do Fernando Pessoa, e a outra a do Xico. O Fernando, além da sua invulgar erudição, dispunha, também, de uma capacidade activa de produção literária, as quais lhe equilibravam, apesar de tudo, os pratos da sua balança do receber e do dar, ou restituir. O Xico, o caso difícil do Xico, era o da sua extraordinária inteligência receptiva a par da sua incapacidade de restituição do plenamente recebido. É o que eu chamo incapacidade sagrada. E isto fez com que a sua inteligência ou acessibilidade receptiva fosse, por desacompanhada de erudição, mais pura que a do Fernando. Francisco do Amaral não perdia caminho cuja luz não fosse de se apagar. Ele era a imagem no espelho, da luz que se lhe pusesse diante. Brilhantemente. E o difícil do seu caso era o da sua balança do receber e do dar, não ter, na sua sina, no seu destino, o prato da restituição. Ele era tremendamente o veículo por onde a luz passava toda, mas passava, vinda de destinos alheios. A sua coerência foi a de ter sido o que não conquistava. Parece inútil uma existência assim?

Mas deixemos, por um segundo, de ser julgadores da vida.

1 de Nov. 50.

ALMADA